Lactato, Gap de CO₂ e Saturação Venosa Central: Três Aliados na Terapia Intensiva Cardiovascular
- Laio Wanderley
- 19 de jan.
- 6 min de leitura
Atualizado: 13 de jun.
O pós-operatório de cirurgia cardíaca exige uma atenção redobrada ao estado hemodinâmico e à perfusão dos tecidos. Os parâmetros de "macrocirculação" (pressão arterial, débito cardíaco, resistência vascular, PCV, etc.) são claros e vistos na monitor da UTI. Porém, a "microcirculação", precisam de exames complementares laboratoriais, pois não são tão evidentes.
Com relação a "microcirculação" (envolve os capilares, arteríolas e vênulas, onde ocorre a troca de nutrientes, oxigênio e resíduos metabólicos) três parâmetros se destacam como ferramentas indispensáveis para o monitoramento de pacientes em terapia intensiva:
Lactato sérico.
Gap de CO₂;
Saturação venosa central de oxigênio (ScvO₂).
Cada um desses parâmetros oferece informações complementares, auxiliando na identificação precoce de problemas hemodinâmicos e na condução precisa do tratamento. No entanto, é fundamental destacar que esses exames devem complementar a anamnese e o exame físico do paciente. Jamais devem ser utilizados ou interpretados de forma isolada.
Infelizmente, observa-se com frequência que algumas decisões clínicas são tomadas apenas com base em dados laboratoriais ou monitorização, sem uma avaliação direta do doente. Por exemplo, é comum colegas planejarem condutas, como o aumento de drogas vasoativas, sem examinar o paciente e perceber que ele não apresenta nenhuma evidência clínica de baixo débito, ou epenas encontra-se com balanço hídrico muito negativo (o que compromete a perfusão). Essas intervenções desnecessárias podem não só ser ineficazes como também prejudiciais.
Portanto, o uso adequado desses parâmetros deve ser sempre integrado a uma avaliação clínica completa (anamnese, exame físico, drenagem e balanço hídrico das 24 horas sempre!!), garantindo que o tratamento seja personalizado e verdadeiramente alinhado às necessidades do paciente. A combinação de dados objetivos e subjetivos é a base para uma prática médica mais segura e eficaz.
O que são esses parâmetros e por que são importantes?
Lactato
O lactato é produzido pelos tecidos quando o metabolismo anaeróbico é ativado, ou seja, quando há insuficiência de oxigênio.
Em pacientes críticos, níveis elevados de lactato indicam que a perfusão tecidual está inadequada, refletindo hipóxia celular ou aumento do metabolismo.
Níveis normais: 0,5 a 2,0 mmol/L. Valores acima de 2 mmol/L exigem atenção, e valores superiores a 4 mmol/L indicam acidose láctica. É sempre adequado consultar os valores de referência do seu laboratório.
Lactato alto, por vezes, não preocupa muito. Cirurgias complexas e Circulação extracorpórea longa (que pode ser esperado em alguns casos - ex: Correção de uma dissecção da Aorta ou um Norwood) podem elevar o lactato mais do que o habitual. O problema é quando ele PERSISTE elevado e só aumenta apesar das medidas clínicas adotadas.
Gap de CO₂ (ΔPCO₂)
Diferença entre a pressão parcial de CO₂ no sangue venoso central (PvCO₂) e no sangue arterial (PaCO₂).
Na prática: colete uma gasometria venosa (pelo acesso central, por exemplo) e uma arterial (pela linha do transdutor da Pressão arterial invasiva - PAI), encontre o CO2 da gasometria venosa e subtraia da "gaso" arterial. O resultado será o tal do Gap.
Um gap de CO₂ elevado (≥ 6 mmHg) sugere hipoperfusão tecidual e /ou aumento do metabolismo celular.
Fisiopatologia do processo: O CO₂ é produzido pelas células durante o processo de respiração celular. O seu aumento nos tecidos pode ocorrer por aumento da produção (na sepse, por exemplo) ou se o sistema circulatório não tá "limpando" os capilares na velocidade adequada (hipoperfusão).
Dessa forma, O gap de CO2 é um indicador do fluxo sanguíneo e metabolismo. Quando esse fluxo sanguíneo é inadequado, a velocidade de depuração do CO2 é menor, sua velocidade de produção pode ser maior, gerando um aumento do Gap.
É especialmente útil para identificar problemas precoces de perfusão (e também respiratório, já que a função pulmonar também participa do processo), antes mesmo de outros sinais clínicos.
Saturação Venosa Central de Oxigênio (ScvO₂)
Mede o percentual de oxigênio residual no sangue venoso central após ser utilizado pelos tecidos. Ou seja, é o que resta de oxigênio no sangue após "nevegar"pelos capilares e retornar ao lado direito do coração para ser novamente oxigenado..
É simples: colete uma gasometria do acesso venoso central - mas tenha certeza que o cateter esteja no átrio direito (visto no raio-x, por exemplo)!
Valores normais: 70% ou mais. Valores baixos (< 70%) indicam que o consumo de oxigênio pelos tecidos está superando a oferta, podendo sinalizar hipoperfusão (passagem lenta de sangue pelos capilares), aumento da demanda metabólica (muita captura de oxigênio) ou falência cardíaca.
Como esses parâmetros se relacionam?
Esses três marcadores fornecem uma visão integrada sobre a perfusão e oxigenação tecidual:
Lactato elevado + ScvO₂ baixa + gap de CO₂ aumentado
Indica uma situação crítica de hipoperfusão, na qual os tecidos não estão recebendo oxigênio suficiente para suprir suas demandas. É essencial atuar rapidamente para corrigir a causa subjacente, pois tudo sinaliza que tem algo ruim acontecendo.
Causas
Hipoperfusão sistêmica: Comum em choques cardiogênico, hipovolêmico, séptico ou obstrutivo, levando ao aumento do lactato e do gap de CO₂, além da redução da ScvO₂.
Baixo débito cardíaco: Insuficiência de bomba após cirurgia cardíaca ou insuficiência cardíaca avançada.
Hipoxia tecidual: Redução da oferta de oxigênio devido a hipóxia global ou regional, como isquemia intestinal ou infarto do miocárdio.
Aumento do consumo de oxigênio: Condições como febre e sepse por exemplo.
Lactato elevado com gap de CO₂ normal e ScvO₂ normal
Pode refletir outras causas, como disfunção hepática ou aumento do metabolismo celular, ou até mesmo erro laboratorial (lembrar que isso existe!).
Também vale lembrar que as drogas vasoativas, especialmente os vasopressores, podem interferir na perfusão (como o Dr. Wanderley diz: "fechando a periferia") e metabolismo, elevando o lactato. Dessa forma, cuidado com Noradrenalina em doses altas sem necessidade expressa (pode parecer óbvio, mas acontece).
ScvO₂ baixa, Gap de CO₂ elevado (ou normal) com lactato normal .
Sinal de que a oferta de oxigênio pode estar limitada, mas o metabolismo anaeróbico ainda não foi ativado de forma significativa.
Também devemos lembrar que o cateter central pode estar mal localizado. Dessa forma, é sempre adequado analisar o Raio-x e avaliar se a ponta do cateter encontra-se no átrio direito (já vi muito cateter central em outros sítios ou não introduzidos ao ponto de chegar na desembocadura da cava superior).
Como usar esses marcadores na prática clínica?
Monitoramento contínuo
Durante o pós-operatório de cirurgia cardíaca, o lactato, o gap de CO₂ e a ScvO₂ devem ser monitorados em intervalos regulares. Quanto mais grave o doente e mais alterado o exame físico, mais frequente esse monitoramento deve ser. Avaliar o doente, os exames complementares, criar hipóteses, tratar os problemas e reavaliar, fechando o ciclo. Alterações nesses valores frequentemente precedem mudanças graves nos sinais vitais, permitindo uma intervenção precoce.
Intervenção guiada
Lactato elevado e gap de CO₂ aumentado: Reavaliar a perfusão tecidual. Ajustar reposição volêmica, suporte inotrópico e uso de vasopressores.
ScvO₂ baixa: Melhorar a entrega de oxigênio e hemodinâmica. Otimizar ventilação mecânica e débito cardíaco (usualmente com uso de dobutamina se a suspeita for de Baixo débito por insuficiência sistólica).
Gap de CO₂ aumentado com lactato normal: Focar na prevenção.
Prevenção de complicações
Valores persistentemente alterados estão associados a piores desfechos, como falência orgânica e mortalidade. A normalização desses parâmetros é um indicador de que a terapia está sendo efetiva.
Pontos centrais e reflexões:
A integração do lactato, gap de CO₂ e ScvO₂ oferece uma visão abrangente do estado metabólico e perfusional dos pacientes em terapia intensiva, especialmente após cirurgia cardíaca.
Nunca esqueça de examinar o doente e as diversas variáveis que podem causas alteração nos exames (inclusivos os fatores que elevam os falsos positivos). Devemos usar o exame complementar como complemento da nossa anamnese e exame físico.
Exame clínico alterado (extremidades frias, sonolência, cianose, hipotermia, etc.) + Macrocirculação limitrófe (PAM em queda ou baixa, por exemplo) + Microcirculação alterada = Ligar o alerta e refletir: ficar junto do doente, avaliar as hipóteses (o problema é volume com balanço hídrico muito negativo, bomba ruim gerando baixo débito, resistência baixa por vasoplegia, ventilação mecânica inadequada, ou tudo isso junto?). Uma Hipótese diagnóstica acertiva salva o paciente.
Tá no plantão com um pós-operatório de cirurgia cardiovascular e tá em dúvida sobre o problema principal? Ligue para o cirurgião do caso, para colega intensivista mais experiente que você e compartilhe o problema. Várias pessoas pensando é melhor que apenas uma. Uma boa discussão pode salvar o paciente.
Esses marcadores não só ajudam a detectar precocemente a hipoperfusão tecidual, mas também guiam intervenções terapêuticas com maior precisão.