Anatomia cirúrgica da valva tricúspide: conceitos práticos e armadilhas cirúrgicas.
- Laio Wanderley
- há 3 horas
- 7 min de leitura

Nesta postagem, o objetivo principal é apresentar as bases da anatomia cirúrgica da valva tricúspide e das principais estruturas anatômicas relacionadas, relevantes para o cirurgião cardiovascular, sempre estabelecendo um paralelo com conceitos cirúrgicos práticos.
A proposta é adotar uma dinâmica simples e objetiva: inicialmente, comentar cada estrutura anatômica e, em seguida, realizar uma reflexão prática sobre como esse conhecimento se aplica à rotina do cirurgião cardiovascular no centro cirúrgico.

Serão abordados os folhetos da valva tricúspide, anel tricúspide, os músculos papilares, as cordas tendíneas e as principais armadilhas cirúrgicas, com ênfase especial no sistema de condução cardíaco e na artéria coronária direita. Ficará evidente que o domínio da anatomia básica é um dos pilares fundamentais para o sucesso cirúrgico e para a prevenção de complicações evitáveis.
Ao final, caro leitor, vamos resolver uma questão no padrão SBCCV, para testar o conhecimento e revisar o assunto.
Folhetos e comissuras:
A valva tricúspide controla o fluxo do átrio direito para o ventrículo direito e é formada por três folhetos principais:
Anterior (o maior, também chamado de antero-superior);
Septal;
Posterior (o menor, também chamado de inferior).
Além deles, pequenos folhetos acessórios podem surgir nos ângulos entre os folhetos principais.


Reflexões práticas:


Quanto ao folheto anterior, por ser amplo, ele pode ser desinserido e posteriormente suturado após a redução do anel, em uma área compreendida entre os folhetos septal e posterior, por exemplo. A técnica do cone, desenvolvida pelo professor José Pedro, demonstrou a viabilidade de rotacionar esse folheto e ressuturá-lo em outra posição, mantendo sua função de impedir o refluxo de sangue para o átrio direito. Há algumas variações técnicas aplicadas ao adulto, mas não se preocupe em se aprofundar nesses detalhes agora — estamos apenas trazendo um exemplo prático.
Anel tricúspide:

O anel tricúspide serve de alicerce para e fixação dos folhetos.
Possui formato em sela, que tende a se tornar mais plano à medida que o anel se dilata, contribuindo para o desenvolvimento de insuficiência tricúspide secundária.

O anel possui uma região lateral e posterior "livre" (veja a imagem abaixo), que é mais sujeita a dilatação, pois não possui o suporte de outras estruturas tais como o trígono fibroso

Anatomia da valva tricúspide vs. dilatação do anel fibroso.
"Quando ocorre dilatação do anel tricúspide, o anel aumenta principalmente ao longo da parede livre do ventrículo direito (Notem na imagem que a porção septal pouco dilata, por estar mais próximo do trígono fibroso direito), resultando em disfunção da coaptação dos folhetos."
Reflexões práticas.
A maioria das correções da insuficiência tricúspide secundária tem por objetivo a redução do anel valvar, evitando a região septal, pois ela pouco dilata e ainda possui proximidade com o sistema de condução (veremos essa armadilha adiante).
Anel tricúspide ≥40 mm (ou seja, anel muito grande) no ecocardiograma, considere fortemente realizar um anuloplastia se estiver realizando outro procedimento (uma troca ou plastia mitral, por exemplo).
Músculos Papilares
Três grupos principais:
Papilar anterior: envia cordas para os folhetos anterior e posterior.
Papilar posterior: menor que o papilar anterior, pode ser multifragmentado, envia cordas para os folhetos posterior e septal.
Papilares septais: pequenos, variáveis, enviam cordas para os folhetos anterior e septal.

Cordas Tendíneas
Originam-se dos músculos papilares
Podem estar inseridos tanto nas bordas livres quanto nas superfícies ventriculares dos folhetos (observem nas imagens anteriores).
Banda Moderadora:

Estrutura muscular importante do ventrículo direito:
contribui para o músculo papilar anterior
carrega fibras do sistema de condução
Reflexão prática:
As bandas musculares do ventrículo direito nada mais são do que feixes musculares identificáveis. Podem existir bandas anômalas ou, até mesmo, bandas normais que se tornam hipertrofiadas e geram obstrução intraventricular, podendo ser ressecadas.
Leia nossa postagem (clique aqui ou na imagem abaixo) específica sobre as bandas do ventrículo direito e como elas impactam a estratégia cirúrgica nas cardiopatias congênitas.
Armadilhas Importantes no Campo Cirúrgico:
A tricúspide está intimamente relacionada a estruturas nobres, e isso exige extrema atenção durante reparos e implantes. Irei citar duas armadilhas principais:
1. Nó Atrioventricular (nó AV)/Sistema de condução: identifique o triângulo de Koch



Reflexões práticas:
Devemos lembrar que em defeitos do septo interventricular e atrioventricular (DSAV) , o sistema de condução pode se encontrar em outros locais. Veja na imagem acima que no DSAV o nó AV encontra-se próximo do seio coronário. Na verdade, particulamente, evito manipular ou dar pontos profundos em qualquer região do triângulo ou muito próximo ao seio coronário.

Notem nessa anuloplastia tricúspide, a região septal é polpada para evitar lesão no sistema de condução. Fonte da imagem: referência 05 Alguns cirurgiões preferem reparar a valva tricúspide (anuloplastia, por exemplo) com o coração batendo, sem cardioplegia. Assim, caso o sistema de condução seja plicado ou lesionado, é possível identificar imediatamente qualquer alteração do ritmo cardíaco (incluindo BAVT) e dessa forma retirar o ponto culpado — algo que não é possível quando o coração está parado.
2. Artéria Coronária Direita
Corre no sulco atrioventricular, muito próxima ao anel tricúspide (veja o vídeo no início deste tópico). Lesões podem ocorrer em suturas profundas ou manobras de redução do anel.
Conclusão prática:
Pontos profundos no anel podem causar lesão coronária direita — uma complicação evitável com atenção anatômica.
Técnica Cirúrgica: Acesso ao Átrio Direito e a Valva tricúspide:
Acesso Torácico
Esternotomia mediana
Toracotomia lateral (em MICS e casos selecionados)
Abordagem do Átrio Direito

Canulação e laqueamento das veias cavas com torniquetes.
Abertura do átrio direito, que pode ser:
longitudinal
transversal
A escolha depende da preferência do cirurgião e patologia associada. Por exemplo: na CIA tipo seio venoso superior (clique aqui para ver a técnica operatória dessa patologia), a incisão longitudital, em direção a cava superior, pode ser interessante para abordar a patologia e acessar a tricúspide.
Cuidado fundamental: Evitar que a incisão se estenda em direção ao nó sinoatrial.
Para revisar esse conteúdo, vamos fazer uma Questão de Anatomia Cirúrgica da Valva Tricúspide no Estilo SBCCV, e a resolução no padrão BIZU CCV!
Durante o reparo cirúrgico da valva tricúspide em um paciente com insuficiência tricúspide funcional secundária, o cirurgião planeja realizar uma técnica de redução do anel tricúspide. Considerando a anatomia cirúrgica da valva tricúspide, suas relações anatômicas e as principais armadilhas do campo operatório, assinale a alternativa CORRETA:
A) O folheto septal é o maior folheto da valva tricúspide e deve ser preferencialmente plicado durante a técnica de bicuspidização, pois está afastado do sistema de condução.
B) A dilatação do anel tricúspide ocorre de forma homogênea em toda a sua circunferência, incluindo a porção septal (principal local de dilatação), motivo pelo qual as suturas devem ser profundas nessa região.
C) O nó atrioventricular situa-se próximo ao folheto anterior da valva tricúspide, tornando essa região referência antômica para localizar o sistema de condução e a mais crítica durante a realização da anuloplastia ou troca valvar.
D) A técnica de bicuspidização da valva tricúspide (técnica de Kay) baseia-se na plicatura do folheto posterior (inferior), reduzindo o diâmetro do anel na sua porção mais sujeita à dilatação.
E) A artéria coronária direita encontra-se distante do anel tricúspide, não havendo risco relevante de lesão durante suturas profundas no anel.
Gabarito: D
Comentário e Discussão
Alternativa D – CORRETA
A técnica de bicuspidização da valva tricúspide (Kay descreveu a primeira técnica de anuloplastia por sutura para o tratamento da insuficiência tricúspide secundária) consiste na plicatura e exclusão do folheto posterior (inferior), que é o menor folheto e está inserido na porção livre do anel tricúspide — região mais sujeita à dilatação por não possuir suporte fibroso (como o trígono). Jamais deve ser realizada no folheto septal, devido à íntima relação dessa região com o sistema de condução (nó AV).
Alternativa A – INCORRETA
O folheto anterior é o maior, não o septal. Além disso, a região próxima a inserção do folheto septal está intimamente relacionado ao sistema de condução, especialmente ao nó AV, sendo uma região de alto risco para bloqueio AV quando submetida a pontos profundos.
Alternativa B – INCORRETA
A dilatação do anel tricúspide ocorre predominantemente na porção livre do anel tricúspide. A porção septal tem uma tendência de dilatar menos, por estar próxima ao trígono fibroso direito.
Alternativa C – INCORRETA
O nó atrioventricular e o sistema de condução localiza-se próximo a região de inserção do folheto septal, no ápice do triângulo de Koch, e não na topografia do folheto anterior.
Alternativa E – INCORRETA
A artéria coronária direita percorre o sulco atrioventricular, muito próxima ao anel tricúspide, especialmente em sua porção posterior e lateral. Suturas profundas e sem pudor podem causar lesão coronariana, sendo uma armadilha cirúrgica clássica nas intervenções da valva tricúspide.
Referências:
Atlas of Cardiac Anatomy, Digital Edition © 2022 Shumpei Mori, Kalyanam Shivkumar
Pourmoghadam, Kamal & Boron, Agnieszka & Ruzmetov, Mark & suguna Narasimhulu, Sukumar & Kube, Alicia & O’Brien, Michael & DeCampli, William. (2018). Septal Leaflet versus Chordal Detachment in Closure of Hard-To-Expose Ventricular Septal Defects. The Annals of Thoracic Surgery. 106. 10.1016/j.athoracsur.2018.02.083.
Khonsari, Cardiac Surgery. Safeguards and Pitfalls in Operative Technique 5 ed. Philadelphia 2017.
Secondary tricuspid valve regurgitation: A forgotten entity - Scientific Figure on ResearchGate. Available from: https://www.researchgate.net/figure/Figure5-Ring-annuloplasty-Left-in-diastole-Right-during-systole_fig2_283697359 [accessed 6 Jul, 2024]
https://citoday.com/articles/2017-july-aug/transcatheter-tricuspid-valve-therapies













































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