Revisão dos principais estudos sobre Stent versus Cirurgia na lesão de tronco da coronária esquerda
Atualizado: 24 de mar.
A comparação entre dois métodos terapêuticos (angioplastia vs cirurgia) objetivando esclarecer qual seria o melhor custo/beneficio, é algo constantemente realizado na medicina. No âmbito da cardiologia, uma batalha científica vem sendo travada ao longo dos últimos anos na tentativa de mostrar qual o melhor tratamento para os pacientes portadores de doença arterial coronariana (DAC) com lesão de tronco da coronária esquerda (LCE). Os dois métodos que participam dessa batalha são a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) e a intervenção coronariana percutânea (PCI).
Pacientes com LCE são considerados graves e complexos. Por se tratar do seguimento arterial mais importante e delicado da "coroa miocárdica”, o tratamento da LCE através de cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) por longos anos foi o tratamento padrão ouro. Devido ao fato da CRM criar um novo fluxo de sangue para o miocárdio, fugindo da área de lesão aterosclerótica focal por meio de uma “ponte sanguínea” (conceito oposto ao da PCI que trata a lesão aterosclerótica in-situ) ela tem sido uma das melhores estratégias de revascularização em vários cenários.
Inlustração comparando o mecanismo de revascularização entre a PCI e a CRM. Observem que as pontes são uma espécie de circulação colateral cirúrgica que fogem das placas de ateroma. Por sua vez, a PCI trata a lesão focal (in situ) mas não evita que placas menores (que sabidamente possuem maior potencial de ruptura) se rompam e provoque uma síndrome coronariana aguda.
Fonte: Doenst, T. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;73(8):964–76.
Entretanto, com o avanço das técnicas de angioplastia, desenvolvimento de novos stents, avanço de exames complementares que auxiliam a revascularização percutânea (ultrassom intracoronário, por exemplo), naturalmente a pergunta a ser feita é se a angioplastia moderna seria tão eficiente quanto a cirurgia para tratar pacientes com LCE.
Para responder se as duas terapias são equivalentes (CRM vs. PCI), vários estudos foram elaborados nos últimos anos.
Abaixo vamos sintetizar os 05 principais trabalhos que comparam CRM versus angioplastia nos pacientes com LCE. Iremos excluir da nossa revisão as meta-análises, que serão abordadas em outra oportunidade.
1. PRECOMBAT 05 ANOS
Publicação: JACC 2015
Estudo: Comparação entre PCI (uso de stent coronário com eluição de sirolimus) e CRM para o tratamento da LCE
Método
Randomizado
Prospectivo
Open-label
Exclusão dos paciente com síndrome coronariana aguda com supra de ST
Uso do ultrassom intravascular em mais de 90% dos pacientes para otimização do angioplastia.
Desfecho primário
Evento cardíaco ou cerebrovascular adverso maior (MACCE), composto de morte por qualquer causa, infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral ou nova revascularização do vaso-alvo [TVR])
Resultado
600 pacientes elegíveis (300 para cada grupo)
279 pacientes (93%) no grupo PCI e 275 pacientes (91,7%) no grupo CRM tiveram cinco anos de seguimento
O escore SYNTAX médio foi de 24,4 + ou - 9,4 no grupo PCI e 25,8 mais ou menos 10,5 no grupo CRM
63% das cirurgias foram sem CEC
Aos 5 anos, significativamente mais pacientes no grupo PCI estavam recebendo terapia antiplaquetária dupla do que no grupo CRM
Aos 5 anos, a incidência cumulativa de MACCE foi de 17,5% no grupo PCI e 14,3% no grupo CRM (HR: 1,27; IC 95%: 0,84 a 1,90; p = 0,26).
Isquemia induzindo nova revascularização do vaso-alvo (TVR) foi mais provável no grupo PCI do que no grupo CRM (11,4% e 5,5%; HR: 2,11; IC95%: 1,16 a 3,84; p = 0,012)
Em relação a acidente vascular cerebral, não houve diferença significativa entre PCI e CRM
Comentários
Em 05 anos, não houve diferenças significativas na taxa de MACCE
O escore SYNTAX não discriminou a melhor estratégia de tratamento.
Pacientes com LCE e triarterial apresentaram melhores resultados com CRM, sugerindo cautela no uso de PCI nesses casos.
Como todo e qualquer estudo, não devemos extrapolar os resultados para toda a população. O PRECOMBAT foi composto por uma população exclusivamente Coreana, foi utilizado ultrassom intracoronario em 90% dos casos, o escore SYNTAX e o EuroSCORE foram baixos quando comparado ao estudo SYNTAX, os pacientes mais complexos tiveram resultados inferiores com a PCI. Dessa forma, as condutas devem ser individualizadas
Limitações
Pacientes selecionados com perfis de risco relativamente baixo.
Crossover, principalmente de PCI para CRM, podem ter introduzido viés.
O estudo não possuía poder suficiente para comparar desfechos duros, como morte, infarto e acidente vascular cerebral.
Tamanho limitado da amostra, os resultados da análise de subgrupos devem ser analisados com cautela
2. MAIN-COMPARE 10 ANOS
Publicação: JACC 2018
Estudo: Comparação dos resultados de PCI e CRM na LCE em vários centros da Coréia
Análise de 10 anos
Método
Estudo observacional
Coorte multicêntrico
Os autores avaliaram 2.240 pacientes com LCE submetidos à PCI (n = 1.102) ou submetidos à CRM (n = 1.138) entre janeiro de 2000 e junho de 2006
Avaliação dos seguintes desfechos
Morte por qualquer causa
O composto de todas as causas de morte, infarto do miocárdio com onda Q ou acidente vascular encefálico;
Nova revascularização do vaso-alvo
Resultados
Nos pacientes submetidos à CRM, 478 (42,0%) foram submetidos à cirurgia sem CEC
Antes do ajuste estatístico (por meio da técnica estatística "inverse probability weighting"), havia diferenças entre os dois grupos em diversas variáveis
A mediana do seguimento entre todos os pacientes foi de 12 anos
Em 10 anos as taxas de morte e composto de morte, infarto do miocárdio com onda Q ou acidente vascular cerebral foram semelhantes entre PCI e CRM
O risco de nova revascularização do vaso-alvo foi maior no grupo PCI
Comentários
PCI com stent farmacológico foi associado com riscos mais altos de morte e desfechos duros em comparação com a CRM após 5 anos
O benefício da revascularização do miocárdio divergiu ao longo do tempo durante o acompanhamento contínuo
A CRM obteve resultados superiores a longo prazo em comparação com PCI em pacientes multiarteriais com alta complexidade clínica e anatômica.
Limitações
Estudo não randomizado e observacional
Paciente do grupo PCI tinha menor complexidade.
3. SYNTAX Extended Survival 10 ANOS
Publicação: Lancet 2019
Estudo: O SYNTAX comparou PCI usando stents com paclitaxel de primeira geração vs CRM em pacientes com lesão de múltiplos vasos e/ou LCE
Métodos
O estudo SYNTAX Extended Survival (SYNTAXES) é uma extensão do acompanhamento do SYNTAX que tem as seguintes características:
Multicêntrico
Randomizado
Controlado
Princípio da intenção de tratar.
O desfecho primário do estudo SYNTAXES
Morte por todas as causas em 10 anos
Resultados
De março de 2005 a abril de 2007, 1800 pacientes foram divididos aleatoriamente
Grupo PCI: n = 903
Grupo CRM: n = 897
Aos 10 anos,
244 (27%) pacientes morreram após PCI
211 (24%) após CRM
Hazard ratio 1.17 [IC95% 0.97–1.41], p = 0.092).
Entre os pacientes com LCE:
93 (26%) dos 357 morreram após PCI
98 (28%) dos 348 após a CRM
Comentários
Após 10 anos de acompanhamento, as proporções de óbitos por todas as causas entre PCI e CRM foram semelhantes.
pacientes com doença coronariana mais complexa (escores SYNTAX mais altos) continuaram a obter benefício da CRM sobre a PCI após 05 anos.
Limitações
O desfecho primário foi todas as causas da morte. Ou seja, não houve descriminação da provável causa da morte, se foi de origem cardiovascular ou não
Desfechos adicionais, como infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, trombose de stent e enxerto oclusão, não foram avaliadas, mas são importantes ao escolher a melhor terapia.
4. EXCEL 05 ANOS
Estudo muito polêmico. Caso queira se aprofundar no debate a respeito do estudo, leiam as nossas postagem:
Publicação: NEJM 2019
Estudo: Testou a hipótese de não inferioridade da intervenção coronária percutânea (uso de stent coronário Xience com eluição de everolimus) em relação à terapia cirúrgica.
Método
Randomizado
Análise por intensão de tratar
Critérios de inclusão
Lesão de tronco maior 70% ou 50-70%
Escore SYNTAX menor ou igual a 32 (complexidade média ou baixa)
Desfecho Primário
Composto por morte por qualquer causa, AVE, IAM
Resultados
Entre 2010 e 2014, 1905 pacientes foram incluídos
948 pacientes para PCI
957 pacientes para CRM
SYNTAX médio de 29.6 + ou - 6.2
As características clínicas e angiográficas basais foram bem balanceadas entre os grupos
O desfecho primário composto de morte, acidente vascular cerebral ou infarto do miocárdio aos 5 anos ocorreu em:
22,0% dos pacientes no grupo ICP
19,2% dos pacientes no grupo CRM
Diferença de 2,8 pontos percentuais; IC 95%: -0,9 a 6,5; p = 0,13)
O desfecho composto secundário de morte, acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio ou revascularização causada por isquemia aos 5 anos ocorreu em:
31,3% dos pacientes no grupo PCI
24,9% dos pacientes no grupo CRM
Diferença, 6,5 pontos percentuais; IC 95%, 2,4 a 10,6
Comentários
Recomendamos a leitura das nossas postagens supra-citadas para compreender toda polêmica em torno do testudo.
Limitações
Pacientes com escore SYNTAX elevado foram excluídos
A definição de infarto agudo do miocárdio foi inapropriada e há a polêmica a respeito da eventual alteração para favorecer o grupo PCI
Os grupos tiveram terapias medicamentosas diferentes
O acompanhamento foi limitado em 5 anos e as curvas de risco continuamos divergindo.
5. NOBLE 05 ANOS
Reflexões sobre o tema:
Primeiramente, podemos perceber que nenhum dos estudos é perfeito e por vezes seus resultados se contradizem. Apesar das contradições, o que parece ser comum é haver uma tendência em beneficio da CRM no longo prazo e uma maior taxa de nova revascularização para o grupo PCI.
A maioria dos estudos que compararam PCI e CRM foram realizados em pacientes sem PCI prévia. Uma análise secundária do estudo EXCEL (publicada recentemente e descrita no nosso blog - clique aqui e leia) demonstrou que a necessidade de uma nova revascularização é fator independente para mortalidade em 03 anos. Considerado o fato de ser praticamente unânime entre os estudos que a PCI possui maior taxa de nova revascularização e que a nova revascularização pode ser fator independente de mortalidade, não seria a intervenção percutânea mais temerosa?
Como o professor Wanderley (cirurgião cardiovascular Alagoano) sabiamente fala, estudos clínicos não são o mundo real. No mundo real os pacientes são bem mais complexos, os recursos são escassos e os problemas administrativos maiores (tempo de espera na fila para realizar o procedimento; ambulatórios superlotados dificultando o seguimento clínico e ajuste medicamento; etc) de forma que devemos usar os estudos para GUIAR as condutas, e não para DITAR condutas.
Referencias
1. Lancet. 2019 Oct 12;394(10206):1325-1334. doi: 10.1016/S0140-6736(19)31997-X. Epub 2019 Sep 2.
2. doi.org/10.1016/S0140-6736(19)31997-X
3. N Engl J Med 2019;381:1820-30.DOI: 10.1056/NEJMoa1909406
4. doi.org/10.1016/j.jacc.2018.09.012
5. Doenst, T. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;73(8):964–76.
6. https://www.acc.org/latest-in-cardiology/clinical-trials/2011/04/04/16/44/precombat
7. https://www.acc.org/latest-in-cardiology/clinical-trials/2016/10/28/19/37/excel
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