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Anatomia cirúrgica da valva aórtica: conceitos práticos e armadilhas cirúrgicas.

Atualizado: 8 de ago.


A anatomia cirúrgica da valva aórtica não é tão simples como imaginamos. É fundamental para o cirurgião cardiovascular ter conhecimento profundo não apenas da valva e seu anel, mas também das estruturas que os circundam.

Nessa postagem, o objetivo principal é mostrar as bases da anatomia cirúrgica da valva aórtica e das principais estruturas relacionadas, que são relevantes para o cirurgião cardiovascular, fazendo um paralelo com conceitos práticos.

VALVA AÓRTICA

Valva aórtica é composta por 3 folhetos ou válvulas:

  • Anterior ou coronariano direito

  • Posterior esquerdo ou coronariano esquerdo

  • Posterior direto ou não coronariano

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Imagem do livro Khonsari mostrando como é feito aortotomia oblíqua para exposição da valva aórtica.

Pode parecer óbvio, mas a valva aórtica nem sempre é tricúspide, podendo ser bicúspide, quadricúspide ou até mesmo monocúspide. Para o cirurgião, saber quantas válvulas a valva aórtica tem é importante, pois pode mudar a conduta em alguns casos.


O grande exemplo é o paciente que possui valva bicúspide e ectasia ou aneurisma da aorta. Sabemos que o ponto de corte para trocar a raiz da aorta e/ou aorta ascendente pode ser menor em paciente com valva bicúspide e fatores de risco de eventos, tendo em vista que esses doentes possuem risco maior de evoluir com aneurisma e complicações decorrentes da dilatação aórtica.

Outro exemplo é na TAVI. A valva bicúspide tem maior probabilidade de apresentar características hostis a TAVI, tais como de menor simetria anular, tamanho assimétrico das cúspides, fusão comissural (rafe), aortopatia associada e calcificação excêntrica. Esses fatores fazem com que os resultados da TAVI no paciente com estenose aórtica e valva bicúspide sejam piores - o estudo NOTION-2 recomenda cautela.

Clique na imagem para ampliar

ANEL AÓRTICO

Há 03 formas que o cirurgião cardiovascular pode analisar e estudar o anel valvar aórtico.

  • 1. Anel anatômico

    • Anatomicamente, o anel aórtico faz parte do esqueleto fibroso do coração possuindo uma forma de coroa.

    • Do ponto de vista prático, essa região deve ser polpada nas cirurgias onde é necessário substituir a raiz da aorta, preservando a valva e seu anel (Cirurgia de David Tirone, por exemplo).

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As três formas de estudar o anel valvar aórtico. Em vermelho na figura, em forma de coroa, é o anel anatômico que faz parte do esqueleto fibroso do coração. Em amarelo, o anel sob a visão do cirurgião sendo o local próximo a junção ventrículo-arterial. Por fim, em verde, o anel virtual.

Fonte da Imagem: referência 05.

  • 2. Anel cirúrgico

    • É o anel que o cirurgião cardíaco foca no intraoperatório, correspondendo ao local de junção do ventrículo esquerdo com a aorta (junção ventrículo-arterial).

    • Usualmente, é no anel cirúrgico aórtico onde o cirurgião passa os pontos para implantar a prótese valvar.

    • No pré-operatório, importância deve ser dada ao tamanho (diâmetro) do anel cirúrgico (presumido pelo ecocardiograma) pois, quando pequeno, pode ser um fator importante para a estratégia operatória (clique aqui e leia nossa análise sobre anel aórtico pequeno).

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Estevan Letti, Cirurgião Cardiovascular da Santa Casa de Porto Alegre, realizando troca valvar aórtica por miniesternotomia. Observem que a sutura está sendo realizada no anel valvar aórtico cirúrgico, correspondendo a junção ventrículo-aórtica.

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Imagem do Khonsari mostrando os pontos que são feitos no anel cirúrgico para implante da prótese valvar

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Imagem de uma troca valvar aórtica realizada no serviço do Professor José Wanderley Neto. Observem os pontos de Ethibond fixados no anel aórtico cirúrgico.

  • 3. Anel virtual ou anel da imagem

    • Como o nome anuncia, o anel virtual não existe como realidade, mas sim como faculdade de estudo dos exames de imagem (tomografia, ressonância e ecocardiograma). Ele corresponde a região de fixação basal do três folhetos da valva aórtica, sendo uma referência bastante utilizado nos procedimentos transcateter.

    • Na TAVI, o anel aórtico virtual é avaliado por tomografia, medindo-se sua área e seu perímetro, que servem de base para a escolha da prótese — sendo o perímetro usado para válvulas autoexpansíveis e a área para válvulas balão-expansíveis.

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Imagem mostrando cortes de tomografia e ecocardiograma delimitando o anel aórtico virtual.

Fonte da imagem: referência 05

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Medidas do perímetro e da área do anel aórtico virtual são realizadas pela tomografia, utilizando o programa Horus (simples de baixar e usar no MacBook). Podemos notar que anel virtual não é um círculo perfeito. Dessa forma,

usamos a opção de polígono fechado do programa para delimitar e contornar o anel virtual.

O programa calcula automaticamente a área e o perímetro. É essencial que essas mensurações sejam feitas na sístole — motivo pelo qual a tomografia deve ser sincronizada ao ECG —, momento em que o anel aórtico atinge seu maior diâmetro e apresenta formato menos elíptico.


  • Armadilha na mensuração do anel para TAVI: Se o dimensionamento do anel for feito na diástole, valores menores de área e perímetro serão encontrados. Dessa forma, podemos estar fazendo um undersizing (subdimensionamento) não intencional da prótese, o que aumenta o risco de embolização.


RELAÇÕES ANATÔMICAS E ARMADILHAS CIRÚRGICAS

  • Cortina mitro-aórtica ou cortina subaórtica

    • A cortina mitro-aórtica é o ponto de continuidade do anel mitral anterior com o anel aórtico, sendo essa relação muito tênue. Passar um ponto mais profundo nessa região durante a troca valvar aórtica pode causar plicatura do folheto anterior da valva mitral e consequentemente insuficiência mitral aguda nos pós-operatório.

    • Na cirurgia de implante de prótese mitral, devemos ter o mesmo cuidado ao passar os pontos na região da cortina mitro-aórtica mas dessa vez a consequência será a plicatura da valva aórtica e insuficiência aórtica aguda (Veja a postagem sobre anatomia cirúrgica da valva mitral).

Observem nas imagens que a valva mitral tem relação íntima com a valva aórtica. Na imagem em preto e branco, retirada do livro do Khonsari, percebe-se a valva mitral na região do anel aórtico, que fica por volta das 6-9 horas na visão do cirurgião, tendo relação principalmente com o folheto não coronariano.

  • Pontos comissurais e Sistema de condução

    • A importância dos pontos comissurais é que o sistema de condução elétrico do coração passa na região intercomissural das cúspides não coronariana e coronariana direita. Pontos muito profundos nessa região podem atingir diretamente o nó atrioventricular e, consequentemente, gerar bloqueio atrioventricular total (BAVT).

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Observem as relação anatômicas do sistema de condução com a valva e anel aórtico.

Fonte da imagem: referência 01.

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Mais uma imagem do Khonsari demonstrando lesão inadvertida do sistema de condução. Pontos muito profundos no anel aórtico, na região próxima da comissura dos folhetos coronarianos direito e não coronariano, podem causar BAVT por lesão direta no nó átrio-ventricular.

  • Óstios coronarianos

    • Os óstios coronarianos, situados nos seios de valsava (estruturas semicirculares da raiz da aorta que comporta o sangue na diástole) tem relação muito próxima com o anel valvar. Exames de imagem como tomografia, cateterismo e ecocardiograma podem ajudar a topografar os óstios coronarianos.

    • O cirurgião deve estudar no pré-operatório de troca valvar aórtica a localização dos óstios.

    • Deve-se ficar sempre atento quando os óstios coronarianos são muito baixos. Pacientes que irão realizar troca valvar aórtica convencional e possuírem óstios coronarianos muito baixos em relação ao anel aórtico cirúrgico, há um risco muito maior de serem obstruídos pela estrutura da prótese. Obviamente, o cirurgião também deve ter cuidado para não suturar alto os pontos que irão ancorar a prótese. A idéia é evitar que a prótese fique no mesmo plano dos óstios e acabe por obstruí-los completamente. É fácil deduzir a consequência dessa complicação: infarto agudo do miocárdio!

    • A altura do óstio também é importante para o cirurgião que irá realizar uma implante de valva aórtica transcateter (TAVI). Quando os óstios coronarianos possuem uma altura baixa (< 10-12 mm) em relação ao anel aórtico virtual, existirá um maior risco de oclusão pela prótese após o implante via cateter.

    • Deve-se também observar no pré-operatório se os óstios coronarianos possuem origem anômala ou são muito altos, para não provocar lesão inadvertida durante a aortotomia.

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Imagem retirada da referência número 06. Notem a relação entre o óstio coronariano esquerdo, o anel valvar aórtico e os pontos de sutura.

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Medição da altura da coronária no planejamento da TAVI, realizada pelo professor Kleberth Tenório.

Na imagem, observa-se que, em relação ao anel aórtico virtual, a altura da coronária esquerda é inferior a 10 mm (neste caso, 8,8 mm de distância do plano do anel virtual até o início do óstio). Trata-se de um fator de risco para obstrução coronariana durante a TAVI, exigindo estratégias alternativas durante o procedimento ou maior cautela na indicação.



  • Em suma

    • A valva aórtica é tricúspide...mas nem sempre (pode ser mono, bi, tri ou quadricúspide)

    • O anel aórtico pode ser descrito de 03 formas:

      • 1. Anel anatômico

      • 2. Anel Cirúrgico

      • 3. Anel Virtual

    • As principais armadilhas anatômicas são:

      • A Cortina mitro-aórtica

      • O Sistema de condução

      • Os óstios coronarianos

Tendo em vista os aspectos observados na presente análise, se o fino leitor preferir o conteúdo em vídeo, dispomos da videoaula "Anatomia cirúrgica da valva aórtica: conceitos práticos e armadilhas cirúrgicas" (assista abaixo).

Referências:

  1. Anderson RH. The surgical anatomy of the aortic root, in: Multimedia Manual of Cardiothoracic Surgery, doi:10.1510/ mmcts. 2006.002527

  2. Anatomy and Function of Normal Aortic Valvular Complex 55 http://dx.doi.org/10.5772/53403

  3. Interventional Cardiology Review 2015;10(2):94–7

  4. Khonsari, Cardiac Surgery. Safeguards and Pitfalls in Operative Technique 5 ed. Philadelphia 2017.

  5. Circulation. 2019;139:2685–2702. DOI: 10.1161/CIRCULATIONAHA.118.038408

  6. Cardiac Surgery: Operative Technique, 2ND Edition ISBN: 978-1-4160-3653-1

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