O CIRURGIÃO CARDÍACO INTERVENCIONISTA: UMA AFRONTA AO HEMODINAMICISTA?
Atualizado: 2 de ago. de 2023
Poucas décadas atrás, a cirurgia cardiovascular e a hemodinâmica travaram uma grande discussão que gerava um desconforto enorme nos cirurgiões. O debate girava em torno da revascularização do miocárdio e ecoava sobre o futuro da especialidade cirúrgica: será que a hemodinâmica iria acabar com a cirurgia cardíaca nas próximas décadas?
Para quem não se recorda, em meados de 2010, discussões sobre o Syntax trial estavam a todo vapor. Neste estudo, os autores realizaram a seguinte pergunta: Qual tratamento era melhor, a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM), clássica e invasiva, ou a angioplastia transluminal coronária (ATC), tratamento percutâneo de menor agressividade? No desenrolar deste estudo, a narrativa que se criava era que a ATC iria substituir a CRM, eliminando o procedimento mais rotineiro do cirurgião cardiovascular. Tal debate gerava um grande desconforto no cirurgião cardíaco brasileiro, especialmente no que tange aos procedimentos transcateter. O que se criava ali, para as gerações mais novas, era a visão de que as intervenções de menor agressão eram o futuro. O estudo Syntax, após 05 anos de seguimento, não demonstrou superioridade da Angioplastia em relação à CRM, porém acelerou a percepção do cirurgião cardíaco brasileiro, especialmente nas novas gerações, de que não deveria afrontar e virar as costas para as intervenções percutâneas, e sim absorvê-las em seu arsenal da maneira mais ampla possível.
No momento em que o implante percutâneo valvar aórtico (TAVI) e o fechamento percutâneo da comunicação interatrial se tornaram uma realidade no Brasil, muitos cirurgiões abraçaram a tecnologia. Não criou-se uma torcida a favor da cirurgia convencional contra a TAVI. Na realidade, os cirurgiões cardiovasculares aprenderam as técnicas percutâneas e incorporaram esses tratamentos intervencionistas. A partir deste momento, nasceu - filosoficamente e academicamente - o que chamo de Cirurgião cardíaco endovascular, intervencionista.
Na realidade, Cirurgiões cardíacos que se dedicam a procedimentos percutâneos não é algo novo. Há vários no Brasil e no mundo que se tornaram referência, e atuam nessa área há décadas. Aqui no Brasil Cirurgiões cardiovasculares como Prof. Honório Palma, Diego Gaia, Eduardo Saad, Marcela Sales, Alexandre Magno, Anderson Terrazas, Paulo Prates e diversos outros, nos quatro cantos do país, provam que a cirurgia cardiovascular enraizou de vez as técnicas transcateter. A tendência é apenas crescer.
No decorrer das últimas décadas, o interesse dos cirurgiões cardiovasculares nos procedimentos endovasculares provocou um desagrado em alguns Hemodinamicistas - principalmente aqueles que advogam e querem tomar para si todos os procedimentos que envolvam cateteres. O desagrado pode estar relacionado a alguns fatores. O primeiro, caro leitor, talvez seja o pensamento de mercado. Se os cirurgiões cardíacos também realizarem procedimentos transcateter, alguns hemodinamicistas podem achar que irão perder espaço, pacientes e procedimentos com um agradável valor agregado. Quiçá, este seja o motivo pelo qual em alguns hospitais o hemodinamicista queira “proibir” o cirurgião de usar "sua" máquina de hemodinâmica. Esse tipo de pensamento, além de desleal com os “colegas” cirurgiões - que possuem habilitação, respaldo legal e técnico de atuar na área intervencionista - é totalmente inadequado do ponto de vista social. Na realidade brasileira, onde há uma falta de profissionais especializados para atender de maneira abrangente toda a população, cercear ou limitar a atuação de outro colega apenas irá prejudicar o sistema de saúde como um todo, principalmente os doentes pertencentes ao SUS. Portanto, o interesse mercadológico de alguns poucos hemodinamicistas é desrespeitoso com os cirurgiões cardíacos, e também com os pacientes, pois dificulta o acesso destes à avaliação e tratamento adequado.
O segundo desagrado deve ser o filosófico. Pode ser difícil para alguns hemodinamicistas retrógados e arcaicos ver um cirurgião cardíaco realizar procedimentos endovasculares, que sabidamente possuem habilidade e respaldo legal para atuar, além de ter capacidade profissional de decidir (de preferência em conjunto com o heart team) qual estratégia escolher e, sobretudo aplicar - cirurgia aberta, minimamente invasiva, híbrida ou exclusivamente endovascular, acessos alternativos, tudo isso o cirurgião treinado pode dedicar e prestar. Além disso, o sofisma de que apenas o hemodinamicista tem conhecimento sobre cateterismo é antiquado. Cirurgiões cardiovasculares, vasculares e neurocirurgiões são exemplos de profissionais que também realizam procedimentos transcateter. Hemodinâmica pode até ser sinônimo de cateter, mas Cirurgia cardíaca, vascular e neurocirurgia não são sinônimo de bisturi (para o corte) e porta agulha (para a sutura). A verdade é que o cirurgião cardíaco moderno se tornou capaz de realizar os mais diversos tipos de procedimentos com as mais variadas técnicas e invasividade, inclusive, podendo lançar mão de procedimentos híbridos, que são aqueles que unem uma intervenção cirúrgica convencional, aberta, com outra endovascular.
Se havia debates em meados de 2010 se a cirurgia cardiovascular iria acabar nas próximas décadas, hoje temos a resposta: não, ela não vai acabar! Na verdade, hoje temos a resposta: ela se modernizou por meio de cirurgias minimamente invasivas e procedimentos endovasculares e transcateter.
Por fim, vale salientar também que após mais de uma década de Syntax trial, a cirurgia de revascularização do miocárdio ainda existe.
Ler isso aquece a alma. Vários professores de outras especialidades da graduação nos desestimulando a fazer CCV porque está "com os dias contados".
Seu texto foi um incentivo para um futuro cirurgião cardiovascular. Muito bom!