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Shunt sistêmico-pulmonar: 04 conceitos básicos.

Atualizado: 15 de mar. de 2021


Para o entendimento de um determinado procedimento, acredito que o primeiro passo é compreender adequadamente o aspecto interno de cada palavra que o define. A palavra shunt, de uso corriqueiro na cardiopediatria, provém da língua inglesa significando desvio. O termo se refere ao desvio de sangue proveniente da circulação sistêmica em direção a circulação pulmonar. Dessa forma, fica fácil entender que shunt sistêmico-pulmonar nada mais é do que qualquer procedimento cirúrgico que tenha por objetivo “criar” um desvio de sangue de um vaso sistêmico para algum vaso pulmonar.

A terminologia, ou seja, o sentido por trás da palavra escrita, nos ajuda a compreender o básico, mas não esclarece todos os conceitos. O leitor não habituado com cirurgia cardíaca pediátrica deve estar se perguntando: por que diabos o cirurgião indicaria a “criação” de um shunt sistêmico-pulmonar? Abaixo irei listar alguns conceitos que te ajudará a compreender as indicações e os tipos de shunt sob a ótica clínico-cirúrgica.

CONCEITO 01: SHUNT É INDICADO PARA CARDIOPATIAS COM HIPOFLUXO PULMONAR

Quando nos perguntamos o objetivo central do shunt, a resposta é mais simples do que imaginamos: o shunt sistêmico-pulmonar é indicado, na maioria das vezes, para as crianças portadores de cardiopatia congênita com HIPOFLUXO PULMONAR! Em outras palavras, qualquer cardiopatia congênita que cause redução de fluxo na circulação pulmonar pode requerer um shunt sistêmico-pulmonar. Dessa forma, o shunt não está indicada para paliação de uma patologia específica, mas sim para tratar um conjunto de cardiopatias que cursam com hipofluxo pulmonar.

O exemplo mais notório e corriqueiro é shunt sistêmico-pulmonar tipo Blalock-Taussig que classicamente foram aplicados para doentes com Tetralogia de Fallot com obstrução severa na via de saída do ventrículo direito (VD). Com o avanço científico e técnico, cada vez mais os pacientes portadores de tetralogia de Fallot realizam correção total da sua patologia (ou procedimentos paliativos percutâneo) e cada vez menos é indicado shunt. Entretanto, em casos selecionados, o shunt cirúrgico ainda é uma alternativa plausível (correção por estágios).

Outros exemplos de patologias que o shunt pode ser uma opção são:

  • Atresia tricúspide

  • Esses pacientes, apesar da CIV que conecta o VE com o VD e sua via de saída, podem ter algum grau de hipoplasia naquela região (ou uma CIV restritiva), de forma que, se cursarem com hipofluxo, poderemos indicar um shunt.

  • Atresia pulmonar com CIV

  • O ideal é unifocalizar o fluxo pulmonar com um conduto Ventrículo direito-ramos pulmonares. Porém, quando os ramos pulmonares forem hipoplásicos o shunt ajuda tanto no fluxo pulmonar quanto no desenvolvimento de suas artérias

  • Atresia pulmonar com Septo íntegro

Uma indicação não corriqueira, a qual foge a regra de que shunt é para hipofluxo pulmonar, é quando o doente possui hipertensão pulmonar severa com Síndrome de Eisenmenger. Buscando aliviar a pressão no sistema vascular pulmonar e reduzir a sobrecarga ventricular direita podemos realizar um shunt entre a artéria pulmonar esquerda e a aorta descendente (shunt de Potts).

Imagem 01: interposição de um tubo entre a artéria pulmonar esquerda e a aorta descendente, caracterizando o Shunt de Potts.

CONCEITO 02: SHUNT, ATÉ SEGUNDA ORDEM, É PALIATIVO

O termo paliação também é frequentemente usado na cardiopediatria, especialmente quando tem relação com shunts. O motivo é que o shunt sistêmico-pulmonar, para a maioria dos casos, é um procedimento transitório, quase nunca definitivo. Ele serve para melhorar a condição clínica do paciente até que, em um segundo momento, a correção total seja realizada. Apesar de não curar o paciente, o shunt promove melhora da cianose, dos sintomas e da qualidade de vida.

Contextualizando, aquele mesmo perfil de paciente anteriormente citado, portador de tetralogia de Fallot, que realizou um Blalock-Taussig no período neonatal, cresceu e agora, com quase 6 meses de vida, ainda possui uma CIV e a via de saída quase que totalmente obstruída. Ele vai viver assim para sempre? Óbvio que não! Agora, após o período de paliação no qual o shunt forneceu o fluxo pulmonar necessário para sobrevivência e desenvolvimento da criança poderemos indicar a correção total da tetralogia de Fallot (ampliação da via de saída do ventrículo direito e fechamento da comunicação interventricular).

Portanto, na maioria dos casos, o shunt será uma ponte até a realização do procedimento definitivo.

CONCEITO 03: INDEPENDENTEMENTE DA TÉCNICA CIRÚRGICA, CONHEÇA OS ATRIBUTOS DO SHUNT IDEAL (INDIVIDUALIZE OS CASOS!)

O shunt tipo Blalock-Taussig é apenas um entre os vários possíveis, com os mais diversos epônimos (Waterston, Potts, Cooley, etc). Cirurgicamente o que vai mudar entre um tipo de shunt e outro é o local e a forma pela qual os vasos serão conectados para fornecer mais sangue para o pulmão (ver imagem 02). Ele pode ser central ou periférico, pode lançar mão de uma artéria (subclávia no caso do Blalock clássico), de homoenxertos ou enxertos sintéticos (PTFE, por exemplo) e pode ser arterial ou venoso (Glenn).

Imagem 02: Figura mostrando os mais variados tipos de shunt sistêmico-pulmonar

Fonte: Referência 01

O shunt de Potts e de Waterston, no contexto da cirurgia cardíaca pediátrica, praticamente foram abandonados perante o maior risco de hiperfluxo pulmonar e dificuldades técnica para realização e fechamento posterior. O Blalock-Taussig clássico raramente é usado. Rotineiramente, os cirurgiões realizam o Blalock-Taussig modificado ou o central através da esternotomia mediana.

Independentemente da técnica aplicada, o shunt ideal deve ter os seguintes atributos:

  • Tecnicamente fácil de se realizar e de ser fechado quando a correção completa for feita.

  • O que muito facilitou a técnica cirúrgica foi o advento de enxertos sintéticos. Hoje a maioria dos shunts são realizados usando um tubo de PTFE. O grande exemplo desse avanço é a modificação da técnica descrita por Blalock-Taussig, que hoje é realizado com enxerto sintético (Blalock-Taussig modificada).

  • Promover fluxo adequado para o pulmão, mas não em excesso.

  • Os shunts central, Waterson ou potts possuem maior risco de hiperfluxo pulmonar e consequentemente hipertensão pulmonar (estão conectados diretamente na aorta, possuindo maior pressão e fluxo). Por sua vez, o Blalock-taussig fornecer quase sempre um fluxo adequado pois a artéria subclávia é um limitador de fluxo para o shunt. Para compreender melhor todos os determinantes do fluxo através do shunt, devemos sempre ter em mente a lei de Poiseuille, que o leitor pode estudar na nossa postagem sobre cânulas e tubos para a CEC.

  • Boa patência

  • A patência está muito associada ao fluxo através do tubo. Um dos principais determinantes do fluxo é o calibre do tubo que foi utilizado para fazer o shunt. Quanto menor o calibre, menor será o fluxo, e, consequentemente, maior o risco de trombose ou estenose. Para um Blalock-Taussig modificado, o calibre do shunt de 3,5-4 mm é o tamanho ideal para uso em recém-nascidos a termo > 3,0 kg. Entretanto, o calibre pode variar conforme outras varáveis (idade, peso, calibre dos vasos, shunt central ou periférico).

  • Devemos sempre lembrar que fatores clínicos (uso de AAS, Hidratação) também são importantes para a durabilidade do Shunt. Mais uma vez é fundamental ter em mente a lei de Poiseuille para compreender todos os determinantes indiretos que irão interferir na patência do shunt. Por exemplo: a desidratação provoca aumento da viscosidade sanguínea, que por sua vez eleva a resistência, provocando redução do fluxo e risco de trombose. A viscosidade faz parte da fórmula para calcular a resistência, que por sua vez é uma das variáveis da fórmula de Poiseuille.

  • Não gerar complicações cardiopulmonares após a oclusão

  • Complicações cardiopulmonares pode advir de distorções dos vasos ou crescimento assimétrico da árvore pulmonar. O shunt central promove um fluxo mais uniforme para ambas as artérias pulmonares promovendo um crescimento simétrico. Por sua vez, os shunts realizados na artéria pulmonar direita ou esquerda podem gerar crescimento assimétrico e distorções.

CONCEITO 04: SHUNT SISTÊMICO-PULMONAR (ARTERIAL) É PREFERÍVEL QUANDO A PRESSÃO PULMONAR FOR ALTA.

No contexto de pressão pulmonar elevada, fisiologicamente (no caso dos neonatos) ou patologicamente, é preferível realizar um shunt sistêmico-pulmonar (arterial!) do que um shunt venoso tipo Glenn.

A shunt venoso tipo Glenn nada mais é que a anastomose da veia cava superior na artéria pulmonar esquerda. Porém, para que esse tipo de shunt tenha sucesso é necessário que a pressão pulmonar seja baixa. É fácil entender o motivo: se a pressão pulmonar for alta, haverá competição de fluxo e baixo gradiente de pressão, dificultando o desvio de sangue da cava superior para a artéria pulmonar. O resultado será hipofluxo pulmonar ou trombose do Glenn.

Em resumo:

  • Shunt sistêmico-pulmonar é indicado para cardiopatias congênitas com hipofluxo pulmonar.

  • Os shunts são procedimentos paliativos.

  • Shunt Blalock-Taussig modificado e shunt central são os rotineiramente realizados, mas sempre devemos individualizar cada caso buscando os atributos do shunt ideal (técnica, fluxo, patência e não distorções anatômicas)

  • Para um Blalock-Taussig modificado, o calibre do shunt de 3,5-4 mm é o tamanho ideal para uso em recém-nascidos a termo > 3,0 kg.

  • Quando a pressão pulmonar for elevada, indicar shunts com elevada pressão (arterial).

Referências:

  1. Pandya, B., Cullen, S., & Walker, F. (2016). Congenital heart disease in adults. BMJ, i3905. doi:10.1136/bmj.i3905

  2. Eghtesady, P. (2015). Potts Shunt for Children With Severe Pulmonary Hypertension. Operative Techniques in Thoracic and Cardiovascular Surgery, 20(3), 293–305.doi:10.1053/j.optechstcvs.2016.02.003

  3. emedicine.medscape.com/article/905950-overview#a1

  4. Muralidhar K. Modified Blalock Taussig shunt: Comparison between neonates, infants and older children. Ann Card Anaesth 2014;17:197-9

  5. Khonsari, Cardiac Surgery. Safeguards and Pitfalls in Operative Technique 5 ed. Philadelphia 2017.

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