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Discurso sobre as técnicas de retirada da artéria torácica interna: reflexões e análise.

Atualizado: 22 de jul. de 2021





Assim como as demais comunidades médicas, a Cirurgia Cardiovascular possui alguns temas que são discutidos de maneira mais utópica e teórica do que, necessariamente, racional e científica. Um exemplo dessa discrepância em temática trata a respeito da melhor técnica de dissecção da Artéria torácica interna (ATI) na cirurgia de Revascularização do Miocárdio (CRM).


Quando comparamos as técnicas de dissecção da mamária, temos dois times distintos: os defensores da ATI esqueletizada e os apoiadores da ATI pediculada. Enquanto que a “torcida esqueletizada" defende que sua técnica oferece maior fluxo e comprimento ao enxerto, além de minimizar o risco de infecção devido a menor agressão cirúrgica; a “torcida pediculada” afirma que a manutenção do tecido circunvizinho oferece uma proteção mecânica contra agressão direta ao vaso, reduz a chance de torção e kinking (acotovelamento do enxerto) e mantém teoricamente um papel “hormonal” (secreção substâncias vasodilatadoras) da gordura e tecido perivascular.


É interessante notar que existem pontos plausíveis e relevantes em todas as afirmações sobre as vantagens de cada técnica.Entretanto, as imposições de opiniões distintas dos "torcedores" de cada time atrapalham o juízo quanto a maior efetividade de uma técnica sobre a outra. Assim sendo, parece prudente, antes de afirmar qualquer coisa em medicina, refletir sobre alguns princípios:


  • Primeiro, o corpo humano e o ato cirúrgico (dissecção da mamária & CRM, por exemplo) compõem um sistema complexo. Nesse tipo de sistema, uma ação não necessariamente trará o resultado esperado, pois há um elevado grau de incerteza e imprevisibilidade. Dessa forma, considerando a complexidade que envolve o ato operatório e seu objeto não podemos tratá-los como algo simples, que não precisa de uma demonstração científica para comprovar sua eficácia e efetividade. Ao comparar duas técnicas operatórias semelhantes dentro de um sistema complexo, o mais sensato é ser cético e respeitar o princípio da hipótese nula: não devendo considerar um fenômeno verdadeiro antes de sua demonstração. Daí te pergunto, caro leitor, existe alguma publicação científica que demonstre de maneira irrefutável a superioridade da ATI pediculada sobre a esqueletizada e vice-versa? Sanaremos essa provocação analisando um artigo recente a seguir.

  • Segundo, o que de fato importa, independentemente da técnica aplicada, é se o paciente irá viver mais e melhor após a cirurgia. Se a mamária foi usada “nua” ou “vestida”, per si, é algo secundário. Dessa forma, não adianta afirmar que uma técnica é melhor do que a outra se nenhuma não se demonstrou (ainda!) reduzir mortalidade e outros desfechos dolorosos ao paciente (infarto, angina, reintervenção, infecção de sítio cirúrgico, etc.).


Após refletir sobre esses dois aspectos, vamos analisar uma publicação recente que saiu no JAMA Cardiology. No sentido de avaliar o efeito da técnica de retirada da mamária na patência do enxerto (tempo em que o vaso enxertado permanece pérvio ou funcional) e nos desfechos clínicos, Lamy et al. (2021) elaboraram um estudo analítico observacional usando dados do COMPASS (trial randomizado duplo-cego que avaliou o uso de rivaroxabana e aspirina para prevenção de eventos [morte, AVE, infarto, etc] em pacientes com doença coronariana ou doença arterial obstrutiva periférica).


Os autores estudaram, para ser mais exato, pacientes que faziam parte de um subestudo do COMPASS (CABG Substudy), que foram aqueles submetidos a CRM (pelos menos duas pontes e receberam enxertos de mamária pediculada ou esqueletizada) e realizaram Angiotc de coronárias durante o seguimento.


A imagem acima demonstra como foram selecionados os pacientes do estudo “Skeletonized vs Pedicled Internal Mammary Artery Graft Harvesting in Coronary Artery Bypass Surgery:

A Post Hoc Analysis From the COMPASS Trial”, publicado no JAMA Cardiology em 16 de junho de 2021.


Fonte: Referência 01


Com relação a interpretação deste trabalho, para minimizar o meu lado torcedor, vou utilizar o método de raciocínio e análise preconizado pelo professor Luís Correia. Tal método, ao meu ver, amplifica a crítica e permite uma análise mais idônea sobre a publicação científica.


Pré-leitura do artigo: sobre as crenças do leitor e do autor.


  • Tendenciosidade do leitor (as minhas crenças internas).


Com relação a minha tendenciosidade vinculada ao tema do artigo, posso dizer que minha crença (“torcida”) é que a mamária pediculada é a melhor opção. Na minha residência e nos diversos serviços que visitei e complementei minha formação, o uso da mamária pediculada era a regra. Somado a isso, o meu chefe, o Dr. Wanderley, sempre apreciou e orientou seus residentes sobre o conceito “No-touch”, cujo princípio defende que quanto menos tocar, manipular ou estirar um tecido (não somente enxertos, podendo ser aplicado para a aorta, etc.), menor será a possibilidade de dano. Isso implica a manutenção do seu tecido circunvizinho. Aplicamos de rotina esse conceito quando retiramos a mamária pediculada e a safena no-touch.


Por conta desses meus vieses pessoais, concentro-me, ao ler o artigo, para não ser contaminado por essas minhas crenças e não me transformar em um torcedor fanático.


  • Tendenciosidade intrínseca e extrínseca do autor (spin).


No tocante à tendenciosidade do autor, o professor André Lamy, cirurgião cardiovascular e um dos autores principais deste estudo, parece apreciar a técnica pediculada. Em uma pesquisa rápida, pude encontrar algumas publicações do professor Lamy defendendo alguns conceitos que envolvem a pediculação da mamária. Um exemplo é o artigo “Perivascular adipose tissue modulates vascular function in the human internal thoracic artery”, publicado em 2005, onde ele foi co-autor. Esse trabalho defende a manutenção da gordura que circunda a mamária, pois esse tecido teria um papel “hormonal”, reduzindo o vasoespasmo por meio da secreção de substâncias relaxantes vasodilatadoras, além de prevenir lesão mecânica. Essa tendenciosidade do autor pode gerar ruídos e vieses no trabalho, porém, fiquei feliz ao ler a conclusão do artigo e não notar nenhum spin evidente (leia o que é spin neste post). Inclusive, o autor deixa claro na conclusão sobre a necessidade de um estudo randomizado para gerar uma evidência científica de melhor qualidade. O Dr. Lamy também parece não ter conflito de interesses comerciais que nos faça pensar em “jeitinhos científicos” para “positivação” do estudo.


Probabilidade pré-teste da ideia: sobre a plausibilidade da hipótese e o conhecimento prévio do tema.


Quanto à probabilidade pré-teste da ideia, vamos antes parafrasear a conclusão do trabalho. O autor afirma que sua análise “demonstrou que a técnica esqueletizada foi associada com maior taxa de oclusão do enxerto e piores desfechos clínicos em comparação a técnica pediculada”.


A probabilidade pré-teste de que a técnica pediculada ofereceria um menor risco de oclusão e melhor prognóstico ao paciente, parece ser plausível e temos algumas publicações neste sentido. Ao evitar cauterização, manipulação e tração muito próxima da mamária, parece ter sentido que isso reduz as chances de lesão endotelial, hematoma ou rasgos no enxerto, especialmente para quem está aprendendo a técnica. Além disso, há publicações prévias sobre o papel funcional da gordura, vasa vasorum e tecido perivascular que envolvem o enxerto. Além de proteger o vaso mecanicamente contra lesões e torções, a hipótese é que o tecido circunvizinho auxilia e produz substâncias que ajudam no controle "autonômico" do enxerto. Porém, o corpo humano e a cirurgia cardíaca é um sistema complexo, não significando que esses potenciais benefícios irão resultar em uma maior patência da anastomose e sobrevida do paciente. Por outras palavras, há plausibilidade na hipótese de superioridade da mamária pediculada, mas isso não significa que podemos afirmar que este conceito foi provado cientificamente. Dessa forma, o próximo passo é analisar a qualidade da evidência exposta pelos autores.


Busca por erros sistemáticos (vieses) e aleatórios (acaso)


É neste quesito que Lamy et al. falham, pois o trabalho está cheio de vieses. Para comparar duas modalidades de tratamento (mamária pediculada ou esqueletizada), o ideal é que seja feito um estudo clínico randomizado duplo cego, com adequado dimensionamento da amostra e todo o resto necessário para minimizar o risco de erros sistemáticos. Nada disso ocorreu nesta publicação, onde os autores usaram dados de um subestudo de um outro estudo (COMPASS CABG Substudy) e realizaram uma análise post hoc, portanto, não pré-especificada. As análises estatísticas foram especificadas somente após a visualização dos dados e fruto de uma amostra que não foi dimensionada e elaborada a priori para o propósito do estudo. E mesmo que houvesse pré-especificação (análise planejada durante o estágio inicial de design do estudo, antes de examinar quaisquer dados), devemos ter o dobro de cautela ao interpretar análises de subgrupos. Dessa forma, logo de cara podemos notar que este trabalho, do ponto de vista metodológico, é muito frágil, havendo nele pouca sustentação e poder para responder a hipótese testada. Ou seja, independente do resultado, perante as limitações metodológicas, ainda restará dúvidas se há diferença entre as técnicas.


Com relação ao desfecho primário do estudo (taxa de oclusão da mamária), a oclusão do enxerto ocorreu em 33 de 344 enxertos de ATI (9,6%) no grupo esqueletizado em comparação com 30 de 764 enxertos de ATI (3,9%) no grupo pediculado (OR ajustado, 2,41; IC de 95%, 1,39-4,20 ; P = 0,002). Os desfechos clínicos MACE (desfecho composto que inclui variáveis não diretamente relacionadas a mamária) e Revascularização também foram favoráveis para mamária pediculada, como o leitor pode ver na imagem abaixo.



Fonte: Referência 01


Nos desfechos citados na imagem acima (MACE e revascularização), é interessante notar que há um valor P<0.05 e Odds Ratio/Hazard Ratio favorável à técnica pediculada. Porém, observem o quão amplo é intervalo de confiança (IC), chegando a variar 5 pontos no caso de MACE. Sabemos que quanto mais largo é o IC, mais imprecisa é a estimativa, o que nos faz desconfiar de erros aleatórios (problemas no cálculo da amostra e inadequação dos dados).


Reflexões finais:


Dado o exposto, podemos perceber que um dos estudos mais recentes sobre mamária pediculada versus esqueletizada não tem poder para acabar com a rixa entre os torcedores de cada técnica. Os argumentos favoráveis para ambos os métodos são ótimos e plausíveis, entretanto, perante a complexidade do sistema e a necessidade de evidências que sustentem o conceito, são necessários melhores estudos (de preferência um ensaio clínico randomizado) que demonstrem a superioridade de uma técnica sobre a outra. Enquanto isso, sejamos bons torcedores (céticos), porém jamais fanáticos.



# Referência:


1. Lamy A, Browne A, Sheth T, et al. Skeletonized vs Pedicled Internal Mammary Artery Graft Harvesting in Coronary Artery Bypass Surgery: A Post Hoc Analysis From the COMPASS Trial. JAMA Cardiol. Published online June 16, 2021. doi:10.1001/jamacardio.2021.1686



3. Masic I, Miokovic M, Muhamedagic B. Evidence based medicine - new approaches and challenges. Acta Inform Med. 2008;16(4):219-225. doi:10.5455/aim.2008.16.219-225


Laio C. Wanderley

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